A criação do Mundo - Miguel Torga #3
Naturalmente, esta autobiografia vai retratando tanto do homem como do poeta. As suas relações pessoais e literárias e como estas se influenciavam, nomeadamente pelo seu auto-denominado "mau feitio", marcado por posições intransigentes que levaram ao seu isolamento.
De notar que, pese embora o reconhecimento de erros e arrependimentos diversos, muitas das intransigências não foram mais que coerência e rectidão moral e honestidade. E ainda, as raízes, essa torga que se agarra às rochas do Douro.
O homem
Que fizera eu da vida? Um rosário de contradições insanáveis. O homem, que por fora parecia um monolíto de certezas, por dentro era uma amálgama de dúvidas. (...) Passara os anos numa descoberta serôndia dum mundo sempre temporão. E tinha plena consciência de que, por fatalidade radical, me fora intrínsecamente impossível ultrapassar as barreiras desse circunstancialismo nativo.
O poeta
O tempo acabara por me ensinar que não há espelho mais transparente do que uma página escrita. É nela que fica testemunhada para todo o sempre a verdade irreversível do autor: a sua autenticidade, se foi sincero, e a sua falsidade, se mentiu. É aí onde os possíveis leitores de hoje e os de amanhã o surpreendem e julgam, e ele próprio, que se procura, acaba por encontrar uma imagem à sua semelhança ou uma ficção irremediavelmente desfigurada.
Teria, pois, de fazer tudo para não deixar de mim uma versão falsa, mesmo verosímil.